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Monkeypox: doença de brancos vivendo em regiões ricas; o que isso ensina?
Monkeypox: doença de brancos vivendo em regiões ricas; o que isso ensina?

Na longa lista de promessas de Ano Novo que o governo Lula terá de fazer na área da saúde deveriam estar políticas públicas para conter e tratar todos os casos de varíola dos macacos, ou monkeypox, se preferir. Eu sei, está todo mundo caladinho a seu respeito, como tivesse sido apenas mais um vírus que passou em nossas vidas. Mas ele continua por aqui. E, talvez, com uma tendência a mudar um pouco o perfil de suas vítimas.

“O registro de novos casos vem diminuindo no mundo todo, mas a doença continua sendo transmitida, inclusive entre mulheres e crianças”, avisa o patologista Paulo Ricardo Martins-Filho, professor da UFS (Universidade Federal de Sergipe), apontado como um dos cientistas mais influentes do mundo na área de clínica médica e odontologia. Quem diz isso não sou eu, mas a mais recente edição do ranking da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. A lista é criada com base em análise de dados, chegando aos 2% de cientistas mais relevantes em suas respectivas áreas. Entre outras linhas de pesquisa na qual mergulha, nos últimos tempos ele e seu grupo na UFS se dedicaram ao estudo da monkey

Há menos de dez dias, no último 6 de dezembro, o professor baiano, mas sergipano de coração, assinou um artigo que saiu na Travel Medicine and Infectious Disease, no qual pinta o retrato nítido da doença no Brasil, país que tem —sabia?— 12% de todos os casos desde maio deste ano, quando o mundo começou a registrar surtos da infecção, que é endêmica em países da África, como Congo e Nigéria. De lá para cá, foram mais de 80 mil pessoas com varíola dos macacos em diversos cantos do planeta, sendo perto de 10 mil brasileiros. Aqui, são 4,6 casos para cada 100 mil habitantes, uma proporção muito próxima da do Reino Unido e da Alemanha —lembrando, porém, que somos maiores do que esses dois países, com a população de 213 milhões de brasileiros, o que faz o nosso número absoluto pesar.

Perdemos para quem? Para os Estados Unidos, com quase 9 casos por 100 mil habitantes, e para a Espanha, com 15,6 para cada 100 mil. “Apesar de termos uma das maiores incidências do mundo, faltava investigar o comportamento da monkeypox entre nós”, observa o professor. Seu trabalho avaliou cuidadosamente todos os 9.729 casos que tivemos entre 9 de junho e 23 de novembro deste ano, entre os quais foram registradas 12 mortes provocadas pela doença.

As lições dos números

Em geral, quando alguém nos apresenta números relacionados à saúde, como estou fazendo agora, eles sempre parecem frios, distantes de nós, do nosso dia a dia. Mas o professor Martins-Filho garante que não.

Estudos assim, que ele chama de ecológicos, mostram não apenas a distribuição e a frequência da infecção, mas como um vírus se comporta, o tipo de manifestação e até determinantes socioeconômicos por trás do problema —o que permite, a quem ligar os seus pontos, algumas boas reflexões. Vamos lá.

À primeira vista, a monkeypox é uma doença de homens — por enquanto, eles são 92,2% dos infectados. Mais: de homens jovens, já que a maioria, ou 73,6%, tem entre 20 e 39 anos de idade. Mais ainda: de homens jovens e brancos, porque apenas 26,9% dos doentes se autodeclararam pardos e 10,9%, pretos para o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Indo além: a maior parte é formada por homens brancos e jovens que fazem sexo com outros homens, já que, entre eles, 57,7% dizem ser homossexuais e 9,8% são bissexuais, sem contar os quase 13% que preferem não se definir em relação à sexualidade. Para fechar, a maior parcela vive em regiões ricas, principalmente no Sudeste e no Centro-Oeste. Aliás, nos estados mais ricos dessas regiões e, digo mais, nos municípios com maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) desses estados ricos.

ogo, você e eu corremos o risco de sair por aí dizendo que a monkeypox é uma doença de homens brancos, jovens, homossexuais ou bissexuais, e ricos. Mas tenhamos cuidado. Estudos como o do professor Martins-Filho servem justamente para a gente tentar entender o que está por trás dos números. Sem preconceito, nem raciocínio apressado.

Só em brancos e ricos, será mesmo?

Difícil imaginar que não existam indivíduos pardos e pretos expostos a esse vírus. “Vimos a mesma coisa no início da pandemia de covid-19”, lembra Martins-Filho. Sim, os primeiríssimos registros da infecção pelo Sars-CoV-2 se concentravam nas regiões mais ricas e entre pessoas mais favorecidas do ponto de vista econômico. E precisamos enxergar as cores da desigualdade: essas regiões, no Brasil, são dominadas por moradores brancos. “Isso indica muito mais um problema de acesso aos serviços de saúde”, pensa o professor. “Infelizmente, existem pessoas em situações de maior vulnerabilidade socioeconômica que tiveram a doença e não receberam o diagnóstico. Isso acabou contribuindo para a manutenção de uma alta taxa de transmissão do vírus da monkeypox pelo país”, acredita o patologista. Temos 12% de todos os casos do mundo, vale repetir.

Se uma pandemia como a de covid-19 não ensinou a todos que, diante de uma infecção viral se espalhando, não tem conta bancária, nem cor de pele que nos proteja quando não existem medidas de prevenção iguais para todos, não sei como desenhar a situação da monkeypox —bem menos assustadora do que a da covid-19, fato inegável.

Não é uma infecção sexualmente transmissível

Não, não é. Logo, bom sublinhar, não é uma infecção que possa ser associada a um gênero ou a uma orientação sexual por si só. Qualquer coisa que se falar diferente disso é preconceito e miopia em relação ao que pode ser feito para evitar a transmissão.

Na investigação, o professor e seus colegas viram que mais de 60% dos pacientes tinham lesões na região anal, perianal e genital, com histórico de exposição a múltiplos parceiros sexuais de duas a três semanas antes de elas surgirem. Aliás, para não sair repetindo que essa é uma doença de homens que transam com homens, nas mulheres contaminadas, 75% das lesões eram nessa área do corpo também e outras, 25% na região oral.

Mas — veja que interessante — em outro estudo do professor Martins-Filho e seus colegas, confirmou-se que os fluidos do corpo, como sêmen, urina, fezes e plasma, não são um material muito bom para flagrar o vírus. No entanto, ele estava muito presente em 99% das amostras de lesões de pele e em mais de 85% das amostras com células da região da garganta, colhidas por meio do swab, aquela espécie de cotonete comprido que a gente passou a conhecer bem nos últimos anos.

“Isso confirma que é muito pouco provável alguém se infectar por meio de trocas de fluidos corporais durante o sexo”, explica o patologista. “Em compensação, as lesões de pele têm uma alta infectividade, como costumamos dizer. É, mesmo, no contato direto e prolongado com a ferida que a doença pode passar de uma pessoa para outra e isso tem maior probabilidade de acontecer em uma relação sexual.”

Em relações sexuais sexual entre quaisquer pessoas, diga-se. Mais uma vez citando o trabalho recém-publicado, até o momento 8% dos casos são em mulheres. Qualquer forma de discriminação por gênero, orientação sexual ou comportamento, além de ser feia por natureza, agrava o problema. “Isso porque leva a um aumento de disparidade na saúde”, observa Martins-Filho. Ou seja, com medo do dedo em riste, muita gente se encolhe com os sintomas e deixa de procurar ajuda.

E, claro, a monkeypox não é transmitida só nesse momento de maior intimidade, se é que me entende. Atualmente, 5% dos registros brasileiros são em crianças e adolescentes. E não deduza que um menino ou uma menina com monkeypox foi vítima de abuso sexual — a transmissão da doença depende de contato de pele apenas.

Pensando em 2023.

Cerca de quatro em cada dez pessoas infectadas pelo vírus da monkeypox tinham, ainda, o HIV. Então, para começo de conversa, quem aparece com as lesões típicas da varíola dos macacos deveria fazer o teste para saber se não tem o vírus da imunodeficiência humana, pelo sim, pelo não. “Assim como, para conter a transmissão, o certo seria rastrear os parceiros sexuais nas semanas anteriores para descobrir se eles não estão com monkeypox também”, informa o professor. E, de novo, por causa do esfrega-esfrega da pele.

“Por sua vez, em aproximadamente 20% dos portadores do HIV diagnosticados com monkeypox, encontramos outras infecções, como sífilis e gonorreia”, conta o patologista. Isso aponta para mais um desafio desta nova era de governo: retomar as tão necessárias políticas públicas de educação e prevenção das infecções sexualmente transmissíveis. A monkeypox não faz parte dessa turma, mas costuma andar por perto.

Publicado em 15/12/2022

Fonte: https://www.uol.com.br/

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