Artigo: O marco regulatório e as parcerias da Saúde

O advogado Lucas Seara, coordenador do projeto OSC Legal, redigiu importante artigo a respeito do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), que impõe novos desafios na relação entre gestores públicos da área da Saúde e as Organizações. O MROSC (Lei nº 13.019/2014) versa sobre o regime jurídico que deve balizar as parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil.

No âmbito da Saúde, no entanto, surgem diversas dúvidas a respeito da aplicação ou não do MROSC em parcerias entre gestores públicos e as Organizações, especialmente por conta das leis que regulamentam o Sistema Único de Saúde (SUS) e sua complementação por meio de convênios e entidades filantrópicas.

E são essas dúvidas que Lucas Seara enumera e busca esclarecer no texto abaixo. Vale a pena conferir e compartilhar entre gestores de Organizações.

A aplicabilidade do MROSC nas parcerias da Saúde

Publicado em: 5 de outubro de 2017

Por Lucas Seara*

A Lei nº 13.019/2014, o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as Organizações, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco. Trata-se de um novo ambiente político normativo onde se estabelecem as regras para as parcerias estabelecidas entre o Poder Público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) com as organizações.

Este novo regime apresenta uma exceção que vem suscitando diversos questionamentos para os atores que atuam no campo da saúde: o MROSC aplica-se ou não às parcerias com Organizações que atuam no campo da saúde? Os gestores públicos da saúde devem seguir o MROSC ao estabelecer as parcerias com Organizações?

Essa questão surge a partir do art. 3º, IV, da Lei nº 13.019/2014, quando afirma que esta Lei não se aplica aos convênios e contratos celebrados com entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, nos termos do § 1º do art. 199 da Constituição Federal.

Este dispositivo da Constituição Federal (art. 199, § 1º) informa que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, cujas instituições poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde (SUS), segundo suas diretrizes. Esta complementaridade se dará mediante contrato de direito público ou convênio, com preferência para entidades filantrópicas e aquelas sem fins lucrativos.

A Lei nº 8080/1990, que regulamenta o SUS, reconhece a relevância pública e ratifica a participação da iniciativa privada, desde que sigam os princípios éticos do SUS e as normas específicas para as atividades de serviços privados de saúde.

Esta norma define “participação complementar”, ao estabelecer que o SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, cujos acordos serão formalizados mediante contrato ou convênio (Lei nº 8080/1990, arts. 24 a 26).

Evidencia-se, de logo, que a natureza complementar dessa participação decorre da insuficiência na “cobertura assistencial”, ou seja, na oferta de vagas ou leitos. Uma vez configurada a insuficiência da cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Poder Público poderá: fomentar entidades civis sem fins lucrativos que atuem no campo da assistência à saúde, como as instituições filantrópicas, via celebração de convênio ou outro ajuste do gênero; ou contratar serviços no mercado junto a entidades privadas, com ou sem fins lucrativos, observando a tabela de preços do SUS. Isto é a participação complementar.Marco Regulatório.

Tais situações se enquadram na Portaria MS nº 1.034/2010 (art. 3º, § único, I e II), que regulamenta as disposições da já citada Lei nº 8.080/1990: o convênio deve ser firmado nos casos de parceria entre o Poder Público e a entidade civil sem fins lucrativos para a prestação de serviços assistenciais à saúde; por sua vez, o contrato é cabível quando o objeto for a compra de serviços de saúde, junto a entidades civis com ou sem fins lucrativos.

Segundo esta Portaria, alem das condições técnicas, operacionais e outras exigências fixadas pelos gestores do SUS, as entidades filantrópicas e sem fins lucrativos deverão seguir os requisitos constantes na Lei nº 12.101/2009, que trata da certificação como entidade beneficente de assistência social.

A Lei nº 12.101/2009, por seu turno, estabelece que a certificação ou sua renovação será concedida à entidade que: tenha regularidade jurídica; comprove a prestação dos serviços assistenciais, com base nas internações e nos atendimentos ambulatoriais realizados; que informe ao SUS a totalidade das internações e atendimentos ambulatoriais realizados para os pacientes usuários (e não usuários) do SUS; registros no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES); submeter-se a avaliações sistemáticas, de acordo com o Programa Nacional de Avaliação de Serviços de Saúde (PNASS); atender as diretrizes da Política Nacional de Humanização (PNH); submeter-se ao Controle Nacional de Auditoria (SNA).

Toda essa normativa deixa evidente que não se aplica a Lei nº 13.019/2014 para as Organizações que prestam serviços de internações e ambulatoriais em complementaridade ao SUS. Veja-se que esta aplicabilidade não decorre exclusivamente da competência de atuação do ente Publico no campo da saúde, isto é, não basta saber se o ator público é o Ministério da Saúde ou são as Secretarias de Saúde, estaduais, distrital ou municipais.

A aplicabilidade do MROSC depende essencialmente da natureza e do objeto do ajuste, alem do tipo de atuação que a Organização desempenhará na parceria. Com isto, se a Organização presta serviços assistenciais na área de saúde, como internações e atendimentos ambulatoriais, cabem os convênios e contratos, conforme já disposto acima, afastando-se o novo regime MROSC.

Mas há casos onde as Organizações não se configuram como prestadoras de serviços, atuam em ações classificadas como promoção à saúde, aquelas voltadas para redução de risco à saúde, tais como: prevenção ao câncer, ao vírus da imunodeficiência humana (HIV), às hepatites virais, à tuberculose, à hanseníase, à malária e à dengue; redução da morbimortalidade em decorrência do uso abusivo de álcool e outras drogas; e, prevenção da violência.

Nestes casos, onde o Poder Público estabelece parcerias com Organizações para ações que não se enquadram na categoria de complementares ao SUS, devem ser observadas todas as normas estabelecidas pelo MROSC. Primeiro porque a Lei nº 13.019/2014 afasta a aplicabilidade da Lei nº 8.666/1993, ao contrário da normativa específica, que estabelece a aplicação da Lei de Licitações para contratação das ações complementares do SUS.

Também se deve considerar a Lei 8.142/1990, quando conceitua o Conselho de Saúde como órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários (art. 1º, § 2°). Aqui aparece uma distinção entre aquelas que atuam de forma complementar, ocupando o espaço dos “prestadores de serviços”, com relação as demais entidades da sociedade civil, que ocupam as vagas de “usuários”.

Aliás, estudo realizado pelo Ministério da Saúde, reconhece que as linhas de financiamento (fomento) aprovadas pelo gestor federal, estadual, distrital ou municipal da saúde com o objetivo de fomentar projetos e atividades em saúde, serão regidas pelas disposições da Lei nº 13.019, por não se enquadrarem no regime de participação complementar da entidade privada no âmbito do SUS. Nesses casos, o Poder Publico deverá selecionar as entidades a serem fomentadas mediante chamamento público e celebrar termo de fomento, à luz dos regramentos do MROSC.

Seguem, portanto, os desafios para que as Organizações e a gestão pública se ajustem as novas regras e procedimentos estabelecidos pelo MROSC. No campo da saúde, destaca-se a discussão sobre a aplicabilidade do novo marco nas parcerias estabelecidas pela gestão pública, tendo em vista a exceção aberta pela lei, para os casos de entidades que atuam em regime de complementaridade ao SUS. Se a parceria envolve prestação de serviços, atendimento ambulatorial, tem-se o regime de contrato ou convênio; por outro vértice, se a parceria inclui prevenção de IST/HIV/AIDS, estratégias de redução de danos para pessoas que usam álcool e outras substâncias psicoativas, ou outras ações consideradas como promoção à saúde, aplica-se o MROSC.

Se o objeto da parceria não se configurar como atuação complementar ao SUS, diante do contexto aqui indicado, entendo que os editais baseados na Lei de Licitações (Lei nº 8.666/1993) e a utilização de convênios são irregulares diante do novo regime estabelecido pela Lei nº 13.019/2014. A opção por estes institutos jurídicos, a meu ver, não são compatíveis com uma interpretação das novas diretrizes e conceitos estabelecidos pelo novo regime das parcerias.

Neste sentido, a gestão pública da saúde, ao decidir pela realização de parcerias com Organizações, deverá acionar sua capacidade de planejamento, executando com cuidado a fase preparatória dos ajustes, adotando medidas como a capacitação de pessoal e provimento dos recursos materiais e tecnológicos necessários para assegurar a sua capacidade técnica e operacional para o acompanhamento destas parcerias.

* Lucas Seara. Advogado. Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (EA/UFBA). Coordenador do Projeto OSC LEGAL, voltado ao Direito e Gestão Social (www.osclegal.org.br). 

Referências

[1] Lei nº 13.019, de 31/07/2014 – Estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil; e altera as Leis nos 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de 23 de março de 1999.

[2] Lei nº 8.080 de 19/09/1990 – Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.

[3] Portaria Ministério da Saúde nº 1.034, de 05/05/2010 – Dispõe sobre a participação complementar das instituições privadas com ou sem fins lucrativos de assistência à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde.

[4] Lei nº 12.101, de 27/11/2009 – Dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social; regula os procedimentos de isenção de contribuições para a seguridade social; altera a Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993; revoga dispositivos das Leis nos 8.212, de 24 de julho de 1991, 9.429, de 26 de dezembro de 1996, 9.732, de 11 de dezembro de 1998, 10.684, de 30 de maio de 2003, e da Medida Provisória no 2.187-13, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências.

[5] Lei nº 12.101, de 27/11/2009, Art. 8º, §3º.

[6] Neste sentido, posição constante na publicação Entendendo a Lei Federal n° 13.019/14 Perguntas e repostas, da Diretoria Central de Normatização e Otimização da Superintendência Central de Convênios e Parcerias da Subsecretaria de Assuntos Municipais da Secretaria de Estado de Governo de Minas Gerais. Disponível em:

http://www.sigconsaida.mg.gov.br/images/mrosc/cartilha_capacitacao_escola_contas.pdf

[7] Lei nº 8.666 de 21/06/1993 – Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.

[8] Lei nº 8.142, de 28/12/1990 – Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.

[9] Estudo Aplicação do Novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil no Âmbito do Sistema Único de Saúde. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. 2016. Disponível em:

[10] http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/janeiro/34/14.Estudo-sobre-a-aplicabilidade-das-disposicoes-da-Lei-n-13019-DEZ2016.pdf