Sobre a violência obstétrica denunciada por soropositiva

Gostaria de tecer alguns comentários com base no caso abordado na matéria “Denúncia: Hospital Municipal do Campo Limpo é acusado de transformar em pesadelo parto de jovem soropositiva”.
Infelizmente, a ironia na afirmação “agora aguenta a dor” não é nova, nem restrita às mulheres soropositivas, reproduzindo no imaginário coletivo a ideia de que parir é sofrer e sofrer em decorrência de momentos de prazer. Paradoxalmente, não raro, frase repetida por mulheres.

O fato de ser uma jovem soropositiva agravou a situação. Somente a gravidez na adolescência já leva a associações simplistas, como um ‘prazer desenfreado’, ‘irresponsabilidade’ ou ‘burrice’, escondendo inúmeros fatores psicossociais que podem estar permeando tal fato.

De acordo com a paciente Carolina: “Quando ela [a médica] descobriu que eu não estava com o exame de carga viral, passou a dizer que eu era irresponsável por não estar com o exame, por ser jovem soropositiva e ter engravidado, mesmo sabendo do risco de contaminar o meu filho, me acusou de não levar o tratamento a sério, de ser egoísta por não deixar meu bebê nascer. Disse que eu não gostava do meu filho e queria que ele nascesse doente”.

Há três pontos que me parecem importantes destacar. O primeiro diz respeito ao grau de conhecimento e, inclusive, de informação por parte dos profissionais da saúde sobre HIV/aids. Não somente quanto a questões obstétricas, de biossegurança e éticas, no campo do trabalho, mas também no que se refere à ética da convivência, que é, ou deveria ser, um pressuposto das campanhas de informação, já que devem contribuir para, se não superar, minimizar situações de pré-julgamentos (preconceitos) e discriminações, por exemplo, quanto à decisão de engravidar por parte de uma mulher com HIV e – por que não? -, de uma jovem mulher com HIV.

Se havia conhecimento técnico-médico, a situação, a meu ver, é mais grave. O fato de a paciente ter comunicado sua sorologia à equipe demonstra que seu interesse não era o de omiti-la. Pelo contrário, os exames mencionados ajudariam em sua recepção no hospital. O que chama a atenção é o fato de ter parecido uma situação nova para os profissionais, do ponto de vista médico e psicossocial.

Entretanto, de acordo com o relato de Carolina, houve uma boa orientação no SAE (Serviço de Assistência Especializado) e isso, por sua vez, certamente contribuiu positivamente. Também evidenciou a necessidade do serviço especializado para HIV/aids e da intensificação da prática intersetorial, que depende sobremaneira dos tomadores de decisão na Saúde, não podendo ficar a cargo somente dos profissionais que estão na linha de frente, sob risco de gerar mais vulnerabilidade institucional para os pacientes.
Em segundo lugar, evidencia-se a fragilidade do treinamento da equipe médica e, consequentemente, um problema ético. Isso pode estar relacionado a vários fatores, como a falta de experiência profissional com pacientes vivendo com HIV/aids, o pouco tempo como profissional de saúde/funcionário concursado e a ausência de treinamentos e atualizações técnico-científicas para os profissionais.

A indicação de superdose do AZT e aleitamento materno demonstra total desinformação e falta de conhecimento e isso em um momento em que o estado de São Paulo caminha sob a meta de zerar a transmissão vertical do HIV. A situação é gravíssima porque desde os anos 90 a posição do Ministério da Saúde é clara. Devido às dúvidas, na época, em torno da posição diferenciada no Brasil, se comparado a países em desenvolvimento, o Ministério da Saúde divulgou recomendações a respeito, em 1995 – leia aqui – nas quais se lê: “As mulheres infectadas pelo HIV não devem amamentar seus próprios filhos, nem doar leite. Os filhos de mães soropositivas para o HIV que necessitem do leite materno como fator de sobrevivência, poderão receber leite de suas próprias mães, desde que adequadamente pasteurizado”. O que levou à Portaria No. 2.415 de 12 dez. 1996 – leia aqui – do Ministério da Saúde, registrado na publicação “Implicações Éticas de Diagnóstico e da Triagem Sorológica do HIV” — leia aqui — (de 1994, revista e atualizada na edição de 2004). As recomendações sobre o uso do AZT em recém-nascidos, do mesmo modo, tem sido amplamente debatidas e estão presentes no Consenso Pediátrico de Aids – leia aqui – com atualização publicada no ano passado, além de outros manuais, orientações e publicações.

Ou seja: as informações existem, o conhecimento médico existe, já debatido, normatizado, publicado e os profissionais desse serviço hospitalar parecem desconhecer.
Do mesmo modo, tudo indica que perdura o deixar para depois o cuidado com o cuidador, porque o relato sobre o nervosismo e a irritação da médica, seja pela paciente, seja por sua tia – que entrou não no começo, mas já na metade do processo do parto – faz-nos relembrar o medo de profissionais, especialmente envolvidos em cirurgias, devido ao risco de se infectarem pelo HIV em acidentes cirúrgicos. Perfeitamente compreensível antes dos debates sobre biossegurança e o início da PEP – Profilaxia Antirretroviral Pós-Exposição de Risco para HIV –, para profissionais da saúde e mulheres vítimas de violência sexual, desde os anos 90, que, no corrente ano, foi revista e atualizada para não somente casos de acidente ocupacional e violência sexual, mas também de relação sexual consentida.

Por último, mas não menos importante, o papel do movimento social, nesse caso por meio do Mopaids (Movimento Paulistano de Luta contra a Aids), continua sendo fundamental. O caso de Carolina é exemplar, mas certamente não é o único e o movimento contribui ao atribuir caráter coletivo ao problema e ser vigilante quanto à necessidade de mudanças a respeito, inclusive diferenciando o que lhe diz respeito daquilo que é da competência governamental.

Artigo de Cristina Câmara, socióloga e consultora na área da Saúde.
Publicado originalmente pela Agência de Notícias da Aids, em 03/10/2015.

Logo Fundo Positivo - Saúde, HIV, Diversidade
Política de Privacidade

Política de Privacidade

A sua privacidade é importante para nós. É política do Fundo Positivo - Saúde Preventiva, HIV e Diversidade respeitar a sua privacidade em relação a qualquer informação sua que possamos coletar no site Fundo Positivo - Saúde Preventiva, HIV e Diversidade, e outros sites que possuímos e operamos.

Solicitamos informações pessoais apenas quando realmente precisamos delas para lhe fornecer um serviço. Fazemo-lo por meios justos e legais, com o seu conhecimento e consentimento. Também informamos por que estamos coletando e como será usado.

Apenas retemos as informações coletadas pelo tempo necessário para fornecer o serviço solicitado. Quando armazenamos dados, protegemos dentro de meios comercialmente aceitáveis ​​para evitar perdas e roubos, bem como acesso, divulgação, cópia, uso ou modificação não autorizados.

Não compartilhamos informações de identificação pessoal publicamente ou com terceiros, exceto quando exigido por lei.

O nosso site pode ter links para sites externos que não são operados por nós. Esteja ciente de que não temos controle sobre o conteúdo e práticas desses sites e não podemos aceitar responsabilidade por suas respectivas políticas de privacidade.

Você é livre para recusar a nossa solicitação de informações pessoais, entendendo que talvez não possamos fornecer alguns dos serviços desejados.

O uso continuado de nosso site será considerado como aceitação de nossas práticas em torno de privacidade e informações pessoais. Se você tiver alguma dúvida sobre como lidamos com dados do usuário e informações pessoais, entre em contacto connosco.

 

  • O serviço Google AdSense que usamos para veicular publicidade usa um cookie DoubleClick para veicular anúncios mais relevantes em toda a Web e limitar o número de vezes que um determinado anúncio é exibido para você.
  • Para mais informações sobre o Google AdSense, consulte as FAQs oficiais sobre privacidade do Google AdSense.
  • Utilizamos anúncios para compensar os custos de funcionamento deste site e fornecer financiamento para futuros desenvolvimentos. Os cookies de publicidade comportamental usados ​​por este site foram projetados para garantir que você forneça os anúncios mais relevantes sempre que possível, rastreando anonimamente seus interesses e apresentando coisas semelhantes que possam ser do seu interesse.
  • Vários parceiros anunciam em nosso nome e os cookies de rastreamento de afiliados simplesmente nos permitem ver se nossos clientes acessaram o site através de um dos sites de nossos parceiros, para que possamos creditá-los adequadamente e, quando aplicável, permitir que nossos parceiros afiliados ofereçam qualquer promoção que pode fornecê-lo para fazer uma compra.

Compromisso do Usuário

O usuário se compromete a fazer uso adequado dos conteúdos e da informação que o Fundo Positivo - Saúde Preventiva, HIV e Diversidade oferece no site e com caráter enunciativo, mas não limitativo:

  • A) Não se envolver em atividades que sejam ilegais ou contrárias à boa fé a à ordem pública;
  • B) Não difundir propaganda ou conteúdo de natureza racista, xenofóbica, betano ou azar, qualquer tipo de pornografia ilegal, de apologia ao terrorismo ou contra os direitos humanos;
  • C) Não causar danos aos sistemas físicos (hardwares) e lógicos (softwares) do Fundo Positivo - Saúde Preventiva, HIV e Diversidade, de seus fornecedores ou terceiros, para introduzir ou disseminar vírus informáticos ou quaisquer outros sistemas de hardware ou software que sejam capazes de causar danos anteriormente mencionados.

Mais informações

Esperemos que esteja esclarecido e, como mencionado anteriormente, se houver algo que você não tem certeza se precisa ou não, geralmente é mais seguro deixar os cookies ativados, caso interaja com um dos recursos que você usa em nosso site.

Esta política é efetiva a partir de 01 Janeiro 2023